“Enquanto o coração bater, enquanto o corpo e a alma se mantiverem unidos, não posso admitir que qualquer criatura dotada de vontade tenha necessidade de desesperar da vida.”
― Júlio Verne, Viagem ao Centro da Terra
SALARIS – ficções a partir do sal
Natalia Loyola, Maura Grimaldi, Victor Gonçalves
Instalada a 230 metros abaixo da superfície, 30 metros abaixo do mar que ali próximo cerca, SALARIS transforma a mina de sal de Loulé num espaço de fricção entre matéria, memória e ficção. A exposição reúne três artistas cujos trabalhos, embora distintos, se entrelaçam num mesmo corpo sensorial e geológico, criando um diálogo íntimo com o entorno mineral, seus resíduos históricos e suas estruturas industriais.
Cada artista ocupa uma câmara distinta, mas suas obras coexistem em um mesmo ecossistema subterrâneo — uma paisagem ativada não apenas pelos materiais, mas pela presença do público. A mina não é aqui apenas cenário, mas protagonista: suas paredes cristalinas, seus ruídos abafados e sua história de extração tornam-se parte da narrativa. Tudo ao redor é sal.
A descida até a exposição, feita em pequenos elevadores que transportam seis pessoas por vez, já é parte da obra. Em três minutos, a luz se rarefaz e as camadas da terra revelam-se em texturas: tijolos que se tornam sal, paredes que escorrem, a umidade que anuncia a profundidade. Acima, uma cidade vive alheia — cafés, mercados, bairros — sem imaginar que sob seus pés repousa um arquivo mineral que já forneceu 200 mil toneladas de sal por ano, hoje reduzidas a 6 mil, em sua maioria destinadas à indústria animal ou à neve dos países frios. Uma memória colonial permanece ali, silenciosa. Existe mais quilometragem de mina do que de cidade acima.
Caminhamos e observamos os nossos arredores, seco e com um ar mais denso, que provoca questionamentos internos em nossos corpos, quais os efeitos de estar a 230 metros de profundidade? Visualizamos tons escuros, rochosos, ocres, e em todo lado há sal, no chão, nas superfícies, nas gotas que ali caem. Sinto uma certa necessidade de explorar o espaço, de tocar, de sentir. Penso que tudo ali vai ser sensorial, o que está por vir me proporciona uma curiosidade que já não sentia a um bom tempo, mas que me deixava em êxtase.
Em “Situação-Salobra” (2025) e “Evento Sentinela” (2025), Victor Gonçalves constrói uma instalação poderosa composta por 1.308 barcos de papel — número de páginas que compõe o relatório oficial da CPI do Senado Brasileiro sobre a Braskem e o colapso geológico criminoso provocado pela mineração de sal-gema em Maceió, Alagoas - dispostos sobre uma plataforma de 185 m2 com 400 toneladas de sal-gema. Ao criar essa ponte entre Brasil e Portugal, Gonçalves ativa uma narrativa transatlântica de violência ambiental e humana. A delicadeza dos barcos contrasta com a gravidade do tema, navegando numa câmara subterrânea que ressoa com camadas de trauma, burocracia e deslocamento. No trabalho de som, criado com blocos de sal rochosos, Victor propõe em um deles, uma caminhada feita entre Maceió e Algarve, no espaço ao redor de cada Mina, no entorno de uma tragédia e de um local que segue em movimento.
Maura Grimaldi apresenta um filme em 16mm, Cristal Negro (2025) onde a materialidade da película encontra o sal como agente poético e químico. Gravado dentro e fora da mina, o vídeo entrelaça tempos: o confinamento pandêmico e o presente suspenso do subsolo. Na cena final, uma figura aparece suando intensamente — um suor que confunde-se com lágrimas — evocando o gotejar constante das paredes da mina. É um corpo que condensa tensão e liberação, como a própria paisagem subterrânea.
Na sua instalação sonora, Natalia Loyola propõe uma experiência sensorial e colaborativa. Sem Título / Untitled (2025), utilizando metais — materiais extraídos da terra assim como o sal — a artista constrói um campo acústico onde o som, direcional e íntimo, que se completa na presença ativa de pelo menos dois visitantes. O espaço da mina, seco e escuro, reverbera esse som de forma singular, tornando cada escuta única. Esse som é portador de diferentes camadas e que soam de diferentes formas numa escuta singular, o mesmo som gravado em um portátil é diferente do som que escutamos quando em frente da obra. A artista destaca o aspecto coletivo e maquinal da mina: estruturas metálicas, caminhões montados in situ, como brinquedos de escala industrial, enfatizam o vínculo entre corpo, território, geologia e tecnologia.
SALARIS é uma exposição a ser vivida. É um corpo coletivo de escuta, um território onde som, imagem e matéria tornam-se inseparáveis. Ao tornar visível o invisível — seja o suor de um corpo, o som de um metal ou os rastros de uma tragédia — a mostra propõe um novo vocabulário para pensar o sal: não como resíduo, mas como arquivo.
-
EN
“As long as the heart beats, as long as body and soul keep together, I cannot admit that any creature endowed with a will has the need to despair of life.”
― Jules Verne, Journey to the Center of the Earth SALARIS – fictions from salt
SALARIS - fictions from salt
Natalia Loyola, Maura Grimaldi, Victor Gonçalves
Located 230 meters below the surface — 30 meters beneath the nearby sea — SALARIS transforms the Loulé salt mine into a space of friction between matter, memory, and fiction. The exhibition brings together three artists whose works, though distinct, interweave into a shared sensorial and geological body, forging an intimate dialogue with the mineral surroundings, their industrial structures, and their layered histories of extraction.
Each artist inhabits a separate chamber, yet their works coexist within the same subterranean ecosystem — a landscape activated not only by material presence but by the audience itself. Here, the mine is not merely a backdrop but a protagonist: its crystalline walls, muffled sounds, and extractive past become part of the narrative. Everything around is salt.
The descent into the exhibition — made in small elevators carrying six people at a time — is already part of the experience. Over three minutes, the light fades and the earth’s strata reveal themselves in texture: bricks giving way to salt, walls that sweat, moisture announcing the depths. Above, a city carries on unaware — cafés, markets, neighborhoods — not knowing that beneath its feet lies a mineral archive that once produced 200,000 tons of salt annually, now reduced to 6,000, mostly for animal feed or de-icing roads in colder countries. A colonial memory lingers there, silent. The mine's tunnels stretch farther in kilometers than the city's streets above.
We walk and observe our dry surroundings, the air denser, provoking internal questions in our bodies — what does it mean to be 230 meters deep? We see dark, ochre, rocky tones; salt is everywhere — on the floor, on the surfaces, in the droplets falling from above. A desire to explore arises, to touch, to feel. Everything here feels sensorial. The anticipation evokes a rare kind of curiosity, an exhilaration that floods the body.
In “Situação-Salobra” (2025) and “Evento Sentinela” (2025), Victor Gonçalves constructs a powerful installation composed of 1,308 paper boats — the exact number of pages in the official report from the Brazilian Senate’s Parliamentary Commission of Inquiry (CPI) on Braskem and the criminal geological collapse caused by rock salt mining in Maceió, Alagoas. These boats are arranged across a 185 m2 platform layered with 400 tons of rock salt. By establishing this bridge between Brazil and Portugal, Gonçalves activates a transatlantic narrative of environmental and human violence. The delicacy of the boats starkly contrasts with the weight of the subject matter, drifting within a subterranean chamber that resonates with layers of trauma, bureaucracy, and displacement. In the accompanying sound work, created with blocks of rock salt, one piece proposes a walk between Maceió and the Algarve — two mining territories — drawing attention to both a site of devastation and another still in motion..
Maura Grimaldi presents Cristal Negro (2025), a 16mm film in which the materiality of celluloid encounters salt as both poetic and chemical agent. Filmed inside and outside the mine, the work intertwines different temporalities: the stillness of pandemic confinement and the suspended present of the underground. In the final scene, a figure appears drenched in sweat — sweat that resembles tears — evoking the perpetual dripping of the mine walls. It is a body condensed with tension and release, mirroring the subterranean landscape itself.
In her sound installation Sem Título / Untitled (2025), Natalia Loyola proposes a sensory and collaborative experience. Using metal — a material extracted from the earth, like salt — she constructs an acoustic field where sound, both directional and intimate, only completes itself in the active presence of at least two visitors. The mine’s dry and dark space amplifies this sound in unique ways, making each listening experience distinct. The same sound, if recorded on a portable device, differs entirely from what is heard when standing before the piece. Loyola emphasizes the collective and machinic nature of the mine: metallic structures, trucks assembled in situ like industrial-scale toys, reinforcing the connections between body, territory, geology, and technology.
SALARIS is an exhibition to be lived. It is a collective body of listening — a territory where sound, image, and matter become inseparable. By making the invisible visible — the sweat of a body, the echo of a metal, the trace of a tragedy — the exhibition proposes a new vocabulary for thinking about salt: not as residue, but as archive.
-
Text by JP Galvão (b. 1993) is a curator and art mediator based in Paris, FR.